quarta-feira, 21 de agosto de 2013

10

Naquele dia, eu fechei o livro. E nunca mais tive coragem de abrir outro. Vasculhava os labirintos da biblioteca com uma certa ansiedade, crente que talvez em algum lugar entre aquele salão infinito as aves que revoavam tranquilamente por ali haviam em algum ponto, derrubado algum livro que iria me trazer alguma desgraça. O fato é que sentia medo. E esse medo foi minha companhia por muito tempo durante a vigília, sendo que durante o sono se apresentava sob a forma de um Cíclope horrendo que me voltava, pérfito, seu único olho. 
Estava exagerando. Isso eu sabia. Mas talvez o isolamento tivesse esse efeito. O isolamento e o silêncio. Não houveram mais visitas. Nem surgiram mais eventos que quebrassem a monotonia de meus dias. Restava-me, ao menos, a leitura por consolo. Em meu estado de ânimo, voltei-me naturalmente para as poesias. Como paliativo, após desfilar meus olhos por dezenas de livros sempre voltava para uma de minhas poesias prediletas de Victor Hugo: 

Desejo primeiro que você ame,
E que amando, também seja amado.
E que se não for, seja breve em esquecer.
E que esquecendo, não guarde mágoa.
Desejo, pois, que não seja assim,
Mas se for, saiba ser sem desesperar.
Desejo também que tenha amigos,
Que mesmo maus e inconseqüentes,
Sejam corajosos e fiéis,
E que pelo menos num deles
Você possa confiar sem duvidar.
E porque a vida é assim,
Desejo ainda que você tenha inimigos.
Nem muitos, nem poucos,
Mas na medida exata para que, algumas vezes,
Você se interpele a respeito
De suas próprias certezas.
E que entre eles, haja pelo menos um que seja justo,
Para que você não se sinta demasiado seguro.
Desejo depois que você seja útil,
Mas não insubstituível.
E que nos maus momentos,
Quando não restar mais nada,
Essa utilidade seja suficiente para manter você de pé.
Desejo ainda que você seja tolerante,
Não com os que erram pouco, porque isso é fácil,
Mas com os que erram muito e irremediavelmente,
E que fazendo bom uso dessa tolerância,
Você sirva de exemplo aos outros.
Desejo que você, sendo jovem,
Não amadureça depressa demais,
E que sendo maduro, não insista em rejuvenescer
E que sendo velho, não se dedique ao desespero.
Porque cada idade tem o seu prazer e a sua dor e
É preciso deixar que eles escorram por entre nós.
Desejo por sinal que você seja triste,
Não o ano todo, mas apenas um dia.
Mas que nesse dia descubra
Que o riso diário é bom,
O riso habitual é insosso e o riso constante é insano.
Desejo que você descubra ,
Com o máximo de urgência,
Acima e a respeito de tudo, que existem oprimidos,
Injustiçados e infelizes, e que estão à sua volta.
Desejo ainda que você afague um gato,
Alimente um cuco e ouça o joão-de-barro
Erguer triunfante o seu canto matinal
Porque, assim, você se sentirá bem por nada.
Desejo também que você plante uma semente,
Por mais minúscula que seja,
E acompanhe o seu crescimento,
Para que você saiba de quantas
Muitas vidas é feita uma árvore.
Desejo, outrossim, que você tenha dinheiro,
Porque é preciso ser prático.
E que pelo menos uma vez por ano
Coloque um pouco dele
Na sua frente e diga "Isso é meu",
Só para que fique bem claro quem é o dono de quem.
Desejo também que nenhum de seus afetos morra,
Por ele e por você,
Mas que se morrer, você possa chorar
Sem se lamentar e sofrer sem se culpar.
Desejo por fim que você sendo homem,
Tenha uma boa mulher,
E que sendo mulher,
Tenha um bom homem
E que se amem hoje, amanhã e nos dias seguintes,
E quando estiverem exaustos e sorridentes,
Ainda haja amor para recomeçar.
E se tudo isso acontecer,
Não tenho mais nada a te desejar ".

sexta-feira, 29 de março de 2013

9

Por um instante eu pensei que nada aconteceria. A luz incidia naquele livro aberto já há alguns minutos e nada acontecia. Me senti um tanto quanto idiota já que estava excitado como uma criança ante a expectativa. Foi então que eu percebi a desgraça se aproximando. Prefiro pensar que aquela mesma força que oferecera-me aquele local de espiação também era a mesma que agora estendia o tempo oferecendo-me a oportunidade de algum entendimento. Pois nunca, em nenhuma das outras vezes de experimentação, os objetos e figuras materializados demoraram tanto tempo para se fazer presentes dentro daquele salão. Mas eu vi. Os olhos sorvendo aos poucos a realidade e penetrando em minhas veias que aos poucos foram de congelando de pavor. Eu vi todo o terror da criatura mitologica chamada Polifemo. Ainda um vulto translúcido se materializando ao longo de todo o salão. Tão grande que só restava-lhe por opção pôr-se de quatro para poder se manifestar com todo o seu horror. Mas conforme o seu rosto foi se tornando claro para mim, fui finalmente tomado de tal pânico que me arremessei sobre o livro a tempo de ver no rosto onde o sangue escorria junto de uma substância esbranquiçada do local onde estivera o seu único olho, suas narinas se abrirem ávidas em minha direção denunciando que ele já se apercebera de que eu estava ali e que era apenas uma questão de tempo antes que aquela mão monstruosa me abatesse e depositasse meu corpo inerte entre aqueles dentes sujos porém potentes, tão grandes que cada canino facilmente era maior do que a minha cabeça. 

segunda-feira, 4 de março de 2013

8

(...) deliciosa bebida, que pediu que lha desse uma segunda vez: "Dá-me mais, por gentileza e, sem tardar, dize-me como te chamas, pois quero brindar-te com um presente de hospitalidade, que recebas com agrado. Sem dúvida, a terra que para os Ciclopes dá o trigo produz o vinho dos encorpados cachos, que a chuva de Zeus intumesce, mas este é puro suco de ambrosia e de néctar".
Assim falou, e de novo lhe enchi a gamela com vinho de reflexos de fogo. Três vezes lho servi, e três vezes o imprudente sorveu de um trago. Depressa o vinho subiu à cabeça do Ciclope. Então lhe dirigi estas melíficas palavras: "Ciclope, perguntas-me qual é o meu nome famoso. Vou dizer-to, mas tu me darás o prometido presente de hospitalidade. Meu nome é Ninguém. Minha mãe, meu pai, todos os meus companheiros me chamam Ninguém". Assim disse; e, ato contínuo, ele replicou com ânimo inexorável: "Ninguém, serás o último a ser comido, depois de teus companheiros; sim, a todos comerei antes de ti: será esse meu presente de hospitalidade".
Dizendo isto, revirou-se e caiu de costas, ficando estendido, com o pescoço papudo encurvado, e o sono, domador irresistível, o venceu. Da garganta lhe golfava o vinho, à mistura com nacos de carne humana, por entre os arrotos da embriaguez. Então, enterrei a cachamorra na densa cinza e, enquanto ia aquecendo, incutia ânimo nos meus companheiros, receoso de que algum deles recuasse por medo. Logo que a estaca de oliveira, apesar de verde, começou a estar incandescente e a espalhar terrível clarão, tirei-a do fogo, peguei nela; os companheiros, de pé, me cercaram, porque um deus lhes incutira grande audácia. Eles tendo tomado a estaca de oliveira, apoiaram a ponta aguçada da mesma no globo ocular, enquanto eu, por cima, fazendo força, a fazia girar: assim como, quando se fura um trado a trave de uma nau, se enrola numa das extremidades do instrumento com correia, e esta é puxada dos dois lados para fazer rodar aquele no mesmo lugar, assim nós, segurando a estaca com a ponta em brasa, a fazíamos revolutear no olho do Ciclope; o sangue corria em torno do ponto incandescente e entre as pálpebras e as sobrancelhas rechinava a pupila tostada, e as raízes se encarquilhavam, por ação da chama. Do mesmo modo que um grande machado ou uma machadinha produzem som agudo e penetrante, quando metidos em água fria para se lhes dar têmpera, mas em seguida o ferro sai mais resistente, assim o olho do monstro silvava em volta da estaca de oliveira. 
Esta era a página que eu iria utilizar. Já havia feito vários testes. Realmente, quando banhadas por aquela luz suave que vinha das janelas, as páginas ganhavam vida. Até o momento só havia experimentado páginas que falavam sobre banalidades e coisas que não representavam perigo. Porém, minha curiosidade só fazia aumentar a cada experimento. E agora eu ficava a pensar no que aconteceria se eu colocasse alguma imagem realmente perigosa? Naturalmente, me voltei aos clássicos. Meus vícios prediletos. Mas ainda não tivera curiosidade de realizar a façanha. Mas o tempo se arrastou morosamente e aos poucos procurar por livros que mostrassem flores, guloseimas e animais fofinhos deixou de ser uma alternativa. Sentia-me excitado ante a possibilidade de pegar algum livro realmente perigoso. Faltava-me a coragem, no entanto, para pegar um livro de terror. Mas, por algum motivo, me voltava para a mitologia. Para Homero e suas obras históricas. Para os meus heróis imortais entre os quais Ulisses reinava como o rei de todas as maquinações. Queria tentar fazê-lo se materializar diante de mim. Ele ou algum de seus companheiros. E por isso ficava lendo e relendo esta parte que era a minha predileta. Finalmente, diante da monotonia do tempo, armei-me de coragem e depositei o livro sobre a mesinha num momento em que a luz a banhava. Seria apenas uma abertura rápida. Uma abertura experimental para ver o que acontecia. E diante de qualquer perigo tudo o que era necessário era um fechar de páginas. Me preparei com o coração batendo forte, relembrando com certa euforia de que não existia de fato um coração. Já havia deixado a página marcada. Dei um peteleco e ela se abriu exatamente no ponto assinalado.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

7

- Era assim mesmo que eu queria! Será preciso muito capim para esse carneiro?
- Por quê?
- Porque é muito pequeno onde eu moro...
- Qualquer coisa chega. Eu te dei um carneirinho de nada!
Inclinou a cabeça sobre o desenho:
- Não é tão pequeno assim... Olha! Adormeceu...
E foi desse modo que eu travei conhecimento, um dia, com o pequeno príncipe.


III
Levei muito tempo para compreender de onde viera. O principezinho, que me fazia milhares de perguntas, não parecia sequer escutar as minhas. Palavras pronunciadas ao acaso é que foram, pouco a pouco, revelando tudo. Assim, quando viu pela primeira vez meu avião (não vou desenhá-lo aqui, é muito complicado para mim), perguntou-me bruscamente:
- Que coisa é aquela?
- Não é uma coisa. Aquilo voa. É um avião. O meu avião.
Eu estava orgulhoso de lhe comunicar que eu voava. Então ele exclamou:
- Como? Tu caíste do céu?
- Sim, disse eu modestamente.
- Ah! Como é engraçado...

Me espreguicei após ter ficado por tanto tempo sentado lendo. Reler O Pequeno Príncipe era dar algum descanso para o meu cérebro ante tantas perguntas sem respostas. Deixei o livro aberto sobre a mesinha e decidi ir dar uma caminhada pelos corredores atrás do próximo livro. Quem sabe o café já houvesse sido trocado ou um novo lanche tivesse aparecido. Existia em um dos cantos um enorme balcão de madeira sólida e luzidia onde magicamente, em determinados momentos, algo saboroso sempre aparecia. Não que eu precisasse comer. Mas era sempre uma surpresa agradável quando o cheiro suave do café escapava de alguma xícara caprichosamente colocada em alguma bandeja de prata. Daquela vez, porém, não havia nada. Talvez eu não estivesse sendo um bom menino, pensei bem humorado. Não importava. Eu gostava de caminhar por entre as intermináveis prateleiras. Ficava imaginando quantos dias levaria para conhecê-las por completo. Não que o tempo fizesse alguma diferença. Era apenas uma curiosidade. Decidi procurar por um livro de Homero que pretendia revisitar tão logo terminasse com o pequeno príncipe. Após longa caminhada encontrei o ponto onde ele estaria e galguei as enormes escadas até encontrar a letra certa. Existia alguma força invisível que a empurrava rente às prateleiras quando eu dedilhava os livros procurando por alguma ordem alfabética. Havia dias em que eu me divertira dando muitas e muitas voltas pelos corredores apenas pensando com força no livro que desejava e me agarrando firmemente à escada que deslizava a toda velocidade até que encontrasse o ponto certo onde eu poderia pegar o livro. Assim, encontrei com facilidade a encadernação vinho com letras douradas e a retirei do local com cuidado. Depois, deslizei pelos degraus até sentir o chão sobre os meus pés. 
Ao passar novamente pelo balcão, antes mesmo de ver, já senti o cheiro delicioso do café. De repente eu não havia sido um homem tão mau afinal. Além dele, um pratinho com bolinhos de chuva me saudaram. Feliz, ajeitei tudo nas mãos e voltei para minha velha e agora querida poltrona. 
O susto que tomei foi tão grande que café e bolinhos caíram no chão produzindo um som que ecoou por todo o salão, fazendo com que um garotinho de cabelos louros, casaca azul e pele rosada erguesse sua cabeça por sobre o ombro e me encarasse com igual surpresa. 
- Quem é você? O que faz aqui?
O garoto me olhou e pediu muito seriamente:
- Por favor... desenha-me um carneiro...
Estremeci. Reconhecia tanto a aparência quanto a fala. O Pequeno Príncipe em carne e osso me encarava com seus grandes olhos azuis límpidos e firmes. 
Minha confusão não tinha precedentes.
- C-como... - Engasguei com minha própria língua. Respirei fundo e recomecei: - Como você chegou aqui?
- Não tem importância. Desenha-me um carneiro. 
Eu tinha certeza. Aquelas eram as falas do personagem. Meu cérebro trabalhava a todo vapor quando, para meu desespero, novas palavras deslizaram através daquela tinta preta que escorria pela parede formando nova mensagem. 

Bom Dia, so passei para informar que a promoção de carnaval, em que seu blog tbem esta participando começou hoje, se você ainda nao recebeu o email com o codigo html do formulario, envie um email para gustavocatalao@hotmail.com que te mando o codigo, abraçoss

A situação não podia ser pior já que a mensagem era grande, o caderno estava sobre a mesinha ao lado do livro. E entre mim e estes objetos estava o garoto fabuloso. A voz dele me despertou quando disse:
- Que coisa é aquela?
Corri então até a mesa passando por ele, espantado por sentir sua respiração ao passar por seu pequeno corpo, para apanhar as anotações antes que desaparecessem. Ele pareceu achar graça de meu jeito aparvalhado pois comentou:
- Ah! Como é engraçado...
Aconteceu, porém, que no ato de apanhar caneta e papel eu esbarrei no livro que estava sobre a mesa e este caiu no chão. Imediatamente o menino explodiu como se fosse uma bolha de sabão deixando para trás o eco cristalino de sua risada.
Engoli em seco com as mãos trêmulas anotando a mensagem borrada, o cérebro dividido entre o Pequeno Príncipe e o novo beija flor que já se formara e agora voava à minha frente. 
- Gustavo. - Nomeei.
Depois, transpirando, deixei-me cair na poltrona. Meu descanso não demorou muito. Logo, outras palavras escorreram pela parede. 
Oi Max,
indiquei seu blog para participar da brincadeira da "Tag", passe lá no meu blog e siga as instruções.
http://seiqueeusei.blogspot.com
Bjos!



Anotei com uma letra quase ilegível dado meu nervosismo. Tampouco conseguia pensar muito quando nomeei a nova ave:
- Tag.
Tudo o que eu queria era compreender o que estava acontecendo. Fiquei um bom tempo com os braços caídos pelas laterais da poltrona, praticamente afundado nela, antes de conseguir pensar em algo. Por fim, meus olhos bateram no livro de Antoine de Saint-Exupéry ainda depositado no chão com as páginas abertas  onde se via o texto de um lado e o desenho do princepezinho sobre o asteróide do outro. 
O livro ainda estava aberto. Porque então o menino desaparecera?
O que havia de diferente?
Reparei então em algo. Onde ele estava aquela luz suave e perene que vazava das enormes janelas não insidia diretamente. Da mesma forma que o livro dos sapos onde a luz suave havia se despejado em um raio de luz acidental. Seria isso? Se o episódio das letras também provinha de uma janela, não seria intuitivo demais concluir que aquela luminosidade também tivesse algum efeito sobre as coisas que ali estavam... 





quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

6

Estava assim folheando distraidamente ao livro, tentando compreender aquele episódio dos sapos. Não havia nada de diferente nele. Talvez apenas o fato dele estar no chão. Todas as prateleiras tinham seus livros meticulosamente organizados pela ordem alfabética e de onde estava podia ver o pequeno vão de onde ele havia saído. Eu não o havia tirado do lugar e estando ali sozinho, isso apenas me intrigava mais. Fui caminhando pensativamente pelo corredor quando me dei conta que novas palavras se dissolviam na parede. Mal tive tempo de entendê-las antes que se tornassem borrões e se fundissem em um único ponto novamente até virar uma nova ave. 

Ficou ótimo, Maximiliano. Gostei muito! Obrigada!

 Corri até o bloco para anotar a nova mensagem antes que minha memória embotasse. Mas algo já me deixava intrigado antes mesmo de deslizar a tinta pela primeira palavra. Alguém me conhecia! Meu nome esta ali assinalado, sem sombra de dúvidas. Porém, ao que se devia o agradecimento? O novo beija-flor veio flutuar diante de meus olhos como os demais haviam feito. Aparentemente, o batismo era um requisito por eles apreciado. Como ainda estivesse com o livro na mão falei distraidamente:
- Príncipe
Apesar de que depois fiquei na dúvida. Essa também era uma ave tão miúdo quanto Immia. Será que se tratava de uma fêmea? Dei de ombros quando o vi voar rápido até os outros dois como se fosse uma criança ávida por contar uma novidade. Voltei minha atenção para o livro, disposto a decifrar ao menos aquele enigma apesar da sensação de que estava sendo observado não me abandonar. Afinal, meu nome havia sido mencionado. Em parte me sentia alegre por poder contar com o fato de ser lembrado. Pensei que  minha existência houvesse sido apagada com todo o resto. Mas ali estava alguém que me chamava pelo nome e que me era grato. 
Voltei para a prateleira com tais pensamentos rondando a cabeça misturados com a curiosidade sobre o que havia acontecido no episódio dos sapos. Talvez o segredo estivesse nos livros daquela autora. Varri os olhos pelas prateleiras. 

Os títulos não indicavam nada perigoso. Depois de ver os sapos, dificilmente eu abriria algo com o título de cobras ou mortos vivos já que não tinha ideia do que estava acontecendo. Folheei, chequei as páginas, verifiquei as lombadas. Não havia nada de diferente. Eram apenas livros. 

domingo, 27 de janeiro de 2013

5

Mesmo que não fosse necessário, eventualmente, provavelmente embalado pela passagem calma do tempo, eu acabava cochilando. Não era como o meu sono de antes. Mergulhava em uma semiconsciência que por vezes trazia até mim vozes à muito tempo esquecidas num passado distante. Algumas eram queridas e outras, nem tanto. Estava um dia assim mergulhado em mim mesmo quando senti alguma coisa gelada roçar minha mão. Acordei dando um pulo assustado que logo foi substituído por um grito de surpresa que naquele enorme salão silencioso tinha o mesmo impacto que um trovão. Jesse e Immia surgiram não sei de onde como se tivessem sido atraídos pela minha voz. A simples visão daqueles dois me fez recuperar um pouco a compostura, já que eu tinha realmente a impressão de que eles tinham um entendimento muito próximo do meu de todas as coisas que eu dizia ou fazia. O que assustara imensamente era um tapete vivo de enormes sapos esverdeados que se arrastavam pelo chão em silêncio. Era uma tal quantidade que o fato de não produzirem nenhum ruído apenas deixava a cena ainda mais apavorante. Não que eu tivesse algum medo supersticioso com relação a esses répteis. Era a quantidade que me assustava. Aquelas patas se esgueirando por cima uns dos outros como se fossem uma onda. 
- E agora? - Perguntei para meus dois mudos companheiros como se eles fossem capazes de dar-me uma resposta.
Eles que haviam permanecido ao meu lado, flutuando em complacente contemplação, ante minha pergunta, voaram velozes até um dos corredores de livro e por lá desapareceram. Como já estava trepado em cima do sofá, tudo o que pude fazer foi observá-los impotente.
- Traidores. 
Mal falei eles voltaram ao meu campo de visão, deram algumas voltas no ar e tornaram e voar pelo mesmo corredor. Fizeram isso mais umas três ou quatro vezes antes que eu concluísse que aquilo que desejavam era que eu os seguisse. Olhei um tanto quanto enojado para o chão criando coragem para a minha empreitada e ajeitei cuidadosamente meu medo em um canto, me agarrando à lógica. Eram apenas sapos afinal.
Meti o pé entre eles até sentir o chão horrorizado ante a ideia de ter de ir esmagando sapos sobre meus pés até chegar do outro lado. Iniciei uma caminhada esquisita, arrastando a sola dos pés pelo chão e fazendo uso da força das pernas para arrastar para fora de meu caminho as criaturas pegajosas. Quando cheguei à entrada do corredor, lá estavam Jesse e Immia me esperando. Sairam voando para o fundo do corredor.
Seria mesmo pedir demais que a causa para aquele pandemônio estivesse ao lado da minha mesinha. Pelo menos, daquele ponto em diante, eu contava com as prateleiras. Trepei na primeira que era bem sólida e alta  ficando fora do alcance dos bichos e iniciei minha escalada andando pelos beirais e me apoiando nas prateleiras. 
Após alguns minutos avançando detectei Jesse e Immia dando voltas em um ponto do corredor e aos poucos fui galgando a distancia até que finalmente, ao me aproximar, percebi que naquele ponto existia um monte por onde os sapos com que brotavam indo por todos os lados. Um fino raio de luz vindo de uma das janelas altas, conseguia transpor as pesadas estantes e derramar-se bem naquele ponto. Como as aves não parassem com seus voos justo naquele ponto, imaginei que ali encontraria o motivo daquele pandemônio. Respirei fundo e enfiei-me novamente entre aquelas criaturas arrastando os pés até aquele ponto. O pior estava por vir. Eu teria de enfiar as mãos naquilo para ver do que se tratava. Controlei minha ojeriza, dobrei meus joelhos e enfiei minhas mãos no meio daquelas criaturas frias e pegajosas, apalpando até conseguir sentir o chão e depois deslizando a ponta dos dedos até sentir a textura de algo. Puxei o objeto para fora. 

Em meio à encadernação aberta os sapos continuavam saindo e caindo pesadamente pelo chão. Sem pensar duas vezes fechei o livro. Como se fossem bolhas de sabão, todos os sapos a partir do ponto em que eu estava foram explodindo e desaparecendo até não restar nenhum vestígio de sua presença naquele lugar. Olhei novamente para a capa do livro intrigado. O que estaria acontecendo? 

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

4

6
AULA DE VÔO
... não importa qual seja o poder de Deus, o primeiro aspecto de
 Deus jamais é o do Senhor absoluto, do Todo-Poderoso. É o do 
Deus que se coloca no nosso nível humano e se limita. 

- Jacques Ellul, Anarchy and Christianity

- Bem, Mackenzie, não fique aí parado de boca aberta - disse a negra enorme enquanto se virava e seguia pela varanda, falando o tempo todo. - Venha conversar comigo enquanto preparo a janta. Ou, se não quiser, faça o que desejar. Atrás do chalé, perto do abrigo de barcos, você vai encontrar uma vara de pesca que pode usar para pegar umas trutas. 
Ela parou junto à porta para dar um beijo em Jesus.
- Lembre apenas - e virou-se para olhar Mark - que você tem de limpar o que pegar. - Depois, com um sorriso rápido, desapareceu no chalé, carregando o casado de inverno de Mack e segurando a arma pelos dois dedos, com o braço estendido.
Mack ficou parado, de boca aberta e com uma expressão de perplexidade grudada no rosto. Mal notou quando Jesus passou o braço por seu ombro. Sarayu parecia ter simplesmente evaporado.
- Ela não é fantástica? - exclamou Jesus, rindo para Mack.
Mack o encarou, balançando a cabeça.
- Estou ficando maluco? Devo acreditar que Deus é uma negra gorda com um senso de humor questionável?
Jesus riu. 

Estava imaginando porque Deus escolheria a figura de uma mulher gorda para aparecer naquele livro se podia ser uma Angelina Jolie e meus olhos foram atraídos por uma agitação incomum do pequeno Jesse. Ele já se tornara um companheiro inquieto porém sempre presente. Achava mesmo o leve zunido de suas asas algo reconfortante. Minha preocupação inicial com a possibilidade dele vir a morrer sem alimento foi esmorecendo com o passar dos dias. Ele apenas circulava pelo amplo salão, por vezes desaparecendo de meu ponto de vista e outras vindo até mim como se estivesse carente de companhia. Existia algo que ele sempre respeitava, porém. Bastava que eu me alojasse na poltrona com um livro em mãos para que se retirasse para algum canto perdido do salão quase infinito, sumindo por entre as prateleiras. Parecia ser um acordo mudo. Por isso o fato dele estar se agitando ao meu redor enquanto tinha o livro A Cabana em mãos era algo inusitado. Bastou seguir sua trajetória com os olhos para entender o que o inquietava. Novamente pela janela redonda que ficava no alto da parede um líquido negro escorria. Esta visão acelerou um pouco meu coração causando certa ansiedade mas já não foi suficiente para me provocar o impacto da primeira mensagem. Como da outra vez o líquido foi escorrendo lentamente pela parede e tornou a formar, como que guiado por pincel invisível, a seguinte mensagem:

Gostei muito do blog! Continue divulgando porque ele ainda vai crescer muito!!!

http://imaginemia.blogspot.com.br/

Recolhi apressadamente meu bloco e como da outra vez, anotei cuidosamente a mensagem antes que a tinta, como que sugada por um imã invisível, fossem atraídas para o centro da parede formando um ponto negro e denso que logo se desprendeu da parede na forma de um outro beija-flor. Tinha agora dois companheiros alados. Este segundo um pouco menor que o primeiro. Procurei o que tinha anotado durante o surgimento de Jesse. Aquela palavra "blog" também estava ali. Ao que parece, alguém ou alguma coisa gostava e seguia o meu... blog. Diacho, o que seria aquilo? Mesmo tendo vasculhado em algumas prateleiras não havia encontrado alusões àquela palavra. Lógico, pela quantidade de prateleiras que se assomavam ali, eu bem podia passar o resto da eternidade procurando. Respirei fundo. O pequeno beija flor negro voou diante de meus olhos e ficou ali parado no ar como se esperasse algo de minha parte. Olhei para o papel onde tinha anotado a mensagem e pensei que "imaginemia" era um nome muito grande. 
- Que tal Immia? - Perguntei como se entendesse o motivo da espera. 
A pequena ave pareceu aceitar a nomeação pois voou como um raio para o lado de seu companheiro e logo os dois partiram para explorar o novo território.